terça-feira, 21 de outubro de 2008

De vez em quando desligo-me


De vez em quando desligo-me.
Desligo-me das coisas certas.
Olho as flores de Março como se fossem diferentes
das flores de Março do ano passado.

Fujo da pasmaceira com os meus ensaios.
Das mulheres vestidas dos lares de camas vazias.
Das nuas investidas de consumo nas ruas.
Dos homens machões de todas elas nos bares.
Das intrigas, dos reis nas barrigas.
Dos bígamos, dos trígamos, dos ausentes.

Deixo a camisa e a vida nas gavetas da cómoda.
No cantar do banho frio sob o chuveiro.
Depois esqueço o corpo meio molhado na esteira.
E, desocupado de pensamentos, desligo-me.

De vez em quando desligo-me.
Das coisas de fora, de agora, de ontem, do mofo.
E na esteira da preguiça deixo-me parado.
Minutos em horas, horas em dias, dias à toa.
Sorrio para a rara sorte de interromper,
a meu bel-prazer,
os dias redondos, estofados da sensaboria.

E antes que vire rotina,
volto, como acordasse de um sonho induzido,
a ouvir o vozerio das pessoas que passam,
as portas que batem embaixo ou em cima,
alguém que assobia além da minha janela.
O oco interesse em quererem saber
como tenho passado, como anda a minha vida.

Sinto-me outra vez incrustado no mundo.
Regresso apenas mais um,
mas tenho guardado a sete chaves o segredo.
Quando as chatices se fazem cansativas,
além da tolerância normal para aborrecimento,
tiro as roupas, tomo um banho demorado,
e atiro-me, ainda meio molhado, na esteira.
E por brincadeira,
simplesmente deixo de viver por algum tempo.

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